domingo, 9 de março de 2014

A lógica do “bandido bom é bandido morto” ou: estamos em guerra?

     Não, não é um texto “comunista” dizendo que temos que tratar bem quem nos mata. Nem um texto “reaça” que defende que se “passe fogo” em todo mundo mesmo não havendo pena de morte no Brasil. É apenas uma reflexão se estamos no caminho certo.

     A situação que vivemos hoje nos leva de volta no tempo, onde o senso de justiça é a vingança, única alternativa diante da impunidade. Então voltemos bastante, até a chamada “Lei de Talião”. Digamos, aí, aproximadamente 1730 ANTES DE CRISTO, na Babilônia. É, aliás, citada no Antigo Testamento.

     Bem, à época era comum a lei do mais forte, onde após uma ação que gerasse dano a uma parte, a outra poderia “se vingar”. Só que quem era mais forte fazia uma vingança maior, normalmente desproporcional ao dano. E quem era mais fraco simplesmente não se vingava.

     Eis que então surge a ideia de que ao sofrer um dano, a pena de quem o fez será IGUAL ao sofrido. Portanto, caso lhe arrancasse um olho, poderias arrancar 1 olho do outro. Ponto. Nem mais nem menos.

     No decorrer da História surge a figura do Estado. Não existe apenas para recolher impostos e acolher corruptos: dentre várias de suas funções, surge a da Justiça e da proteção de sua sociedade. Desta forma o particular não pode mais penalizar quem o ofendeu: tal função cabe agora ao Estado, que decide através do Juiz se a pessoa realmente é responsável pela agressão e qual deve ser a pena a se aplicar. E somente o Estado tem o poder “de vingança”, para assegurar que a pena não passará dos limites estabelecidos.

     Com a evolução da humanidade, cria-se leis mais abrangentes, tentando regular os direitos e deveres das pessoas, tenta-se destituir de vez a possibilidade de uma pessoa fazer justiça com as próprias mãos e cria-se um pequeno núcleo com poder de usar a força contra os cidadãos, mas somente o necessário para se aplicar a lei: a polícia.

     Sendo assim as funções da polícia são: evitar que o crime aconteça, após acontecido, investigar (mas, como já vimos, não é exclusividade dela) e quando o Juiz, em nome do Estado, decidir por aplicar a pena, cabe a ela providenciar que o condenado seja apresentado à Justiça. Fim;

     Pois bem. Em pleno século XXI, uns 3744 anos depois da Lei de Talião, o Brasil se vê obrigado a ressuscitá-la. E por que? Simplesmente porque a impunidade é certa. Enquanto governantes ficam mostrando números absolutos, a realidade é dura: 50.000 pessoas morrem assassinadas por ano e somente 2.500 o Estado consegue mostrar quem foi. Punir esses 2.500 é outra conversa. Se me falarem que 1.000 são condenados E cumprem suas penas, ficarei espantado. Em numeros relativos: 5% se descobre o autor e talvez 2% se consiga uma condenação. Se chegar a isso tudo. Relembro sempre que em muitos países 50% é considerado um sistema fracassado.

     E é nesse cenário que aparece a cobrança da sociedade em se fazer a justiça como era ANTES da Lei de Talião: furtou sua carteira? MORTE. E o pior: não é uma ideia absurda, É NATURAL. Sim, pois onde não se tem justiça se tem vingança.

     O cidadão pensar dessa forma é natural. Não há quem se imagine na condição de vitima ou familiar de vitima e não queira vingança. Mas por isso o Estado deve ser forte: conseguir punir o criminoso, de forma a dar um pequeno alento à vítima, e demovê-la de se vingar, dada a certeza da punição se o fizer. O que preocupa é quando a Polícia resolve encampar essa ideia. Não pode.

     Para o policial também é difícil não se envolver. Como tratar alguém como simples estatística? É como o médico que vê apenas “o paciente”, não vê a pessoa, sua historia, seus familiares, enquanto clinica. E um policial sem sentido de humanidade se torna um perigo absurdo para ele e toda coletividade.

     Agora vamos à lógica do problema: independente dos fatores que levam o sujeito a se tornar criminoso, quanto vale a vida dele para o cidadão de bem? Acredito que nada. Mas todo mundo, em condições normais, dá mais valor à sua vida que a dos outros. Então, para um bandido que a vida vale nada, quanto vale a de um cidadão de bem? Percebe a lógica? Chegamos em um simples resultado: a vida não vale nada. E se ele sabe que morrerá pois não dão valor a ele, não se preocupará em dar valor aos outros.

     Segurança pública é tema muito, mas muito mais amplo que polícia e cadeia: começa com educação formal e social, sentido de coletividade, de amparo aos que entram na chamada zona de risco (o ECA, em suas punições mais graves, tem esse objetivo, mas peca por não supor que menores podem cometer crimes tão ou mais bárbaros que maiores de idade e de forma reiterada), economia funcionando, equilíbrio de renda. Até se chegar na prevenção de crimes há muitas etapas para fracassarem e até a execução da pena temos muitas outras. No nosso caso, TODAS fracassam.

     Então o que fazer? Bem, não defendo que se passe mão na cabeça de bandido, mas tenho minhas dúvidas se matar todo mundo adianta algo. Não criaria uma divisão entre grupos que acabam se rivalizando? Não é isso que vem acontecendo? E pior: não estaria a policia, até mesmo sem perceber, atuando como grupo armado de um dos lados?

     Dos 50.000 homicídios neste pais, tenho certeza que boa parte vem da “limpeza do bem”. Contraditório, penso. Basta ver: vivemos uma grave crise de segurança, mata-se “bandidos” como nunca e mesmo assim a coisa só piora? E nosso vizinhos? E os EUA? E a Europa?

     Nenhum pais em tempos de paz tem tantas mortes como nós. Nenhum pais é tão ineficiente em todas as etapas da segurança pública como nós. E nenhum deles tem tanto “bandido morto” como nós. Estariam eles errados? Não devemos repensar tudo?

     Defendo que o cidadão tenha de forma mais tranquila a posse de uma arma. Creio sim que a legítima defesa está aí para ser usada, mas dentro dos ditames legais. Não nego que prisão perpétua, com colônias impondo trabalho seriam soluções interessantes. Também creio que em meio ao caos que vivemos a polícia tenha uma “pegada mais bélica” em determinadas situações e regiões. Mas não podemos achar que isso é corriqueiro ou que assim vai resolver algo. Só piora. E muito menos achar que a polícia tem como função matar bandido. Não é algo de oficio, é decorrência do trabalho. Pode parecer besteira, mas faz muita diferença. A morte deve ser a exceção e não regra. E tudo isso não passa de mero paliativo, uma tentativa de se sentir seguro pelo instituto da vingança. Engodo.

     O primeiro passo para a mudança seria estancar esse desarmamento covarde da sociedade que vem acontecendo. Acho sinceramente que cairiam os mortos com isso. Não falo de porte, que é o sujeito carregar a arma consigo, é tê-la em casa ou no trabalho. Obviamente as armas deveriam ter um registro como as pessoas, de forma que se possa identificar se ela for usada. A lei até determina isso, mas nunca foi aplicado.

     Depois a eficiência das polícias. Em 70 anos nossas polícias só aprenderam duas coisas: conseguir confissões e matar. Mais nada. São péssimas em investigar. E a estrutura atual, de duas meias policias, garante a ineficiência, que gera a impunidade, que gera o sentimento de vingança, que gera a pressão na policia por matar. Por isso a defesa fervorosa da PEC 51 e de mudanças no procedimento de investigação policial. Se outros países conseguem porque nós não?

     Em seguida a eficácia da pena, pois ao se ter a sensação que ao menos a maioria dos que cometem um delito são punidos, se tem a redução de incidência, pois ninguém quer ser preso (e nem adianta falar em auxilio prisão). Mas essa etapa, além de tudo, precisa da primeira, uma polícia eficiente.

     Por fim, de forma paralela a isso tudo, o suporte a crianças e jovens, de maneira a IMPEDIR que vejam no crime – principalmente os violentos – um futuro promissor, mesmo que curto. O crime nunca acabará, é inerente ao convívio em sociedade, mas temos como reduzi-lo. Essa é a luta.

     Se praticamente todas as religiões pregam que não se deve matar, que não se deve dar continuidade ao ódio, porque acabamos por não apenas aceitar essa realidade como a incentivamos? Não é nosso desejo viver em uma sociedade menos violenta? Como queremos tal resultado fomentando a violência?

     Lembrem-se “olho por olho dente por dente” foi uma evolução para restringir as penas, não a permissão para a vingança. E como dizia O Profeta Gentileza, figura lendária no Rio de Janeiro:

“Gentileza gera Gentileza Amorrr”.